Talvez já exista uma certa fadiga do público  quanto a palestras que envolvem música sacra e música popular. Principalmente,  se considerarmos que alguns palestrantes abusam de chavões, historinhas  sensacionalistas e, o pior, uma apresentação que não distingue entre fato  histórico-social e lenda urbana. Vou comentar alguns pontos abordados nessas  palestras, que povoam a internet na forma acessível do mp3 e do power point. Meu  interesse é expandir esses pontos um pouco além do simplismo habitual e da falta  de acuidade histórica e musicológica. 
1) A música religiosa e secular dos  negros nos EUA do século XIX: há palestrantes que ignoram o contexto  histórico do surgimento do pentecostalismo e do desenvolvimento da música  afro-americana. Segundo George Marsden (Religion and American Culture),  as comunidades negras eram intensamente religiosas e intensamente seculares.  Essa vida sem a divisória entre atividades seculares e espirituais era uma  herança das sociedades mais antigas. A conversão em massa de negros ao  cristianismo nos EUA do século XIX foi seguida de intensa segregação racial por  parte da maioria protestante (eram os tempos imorais de separação oficial entre  igrejas para brancos e igrejas para negros). O que deixou aqueles  recém-conversos à margem do conhecimento litúrgico e doutrinário mais profundo e  resolvidos a estabelecer suas próprias igrejas.
Os movimentos de  santidade (Holliness, Sanctified) do início do século XX abraçavam o  pentecostalismo e sua ênfase no êxtase emocional e espiritual, o que estava  muito mais próximo da cultura de transe das religiões de matriz africana. Nesse  processo, o gospel e o spiritual podem ter sido separados do jazz e do blues no  nascimento, mas se reencontrariam nos anos 1920 dentro das igrejas.
2) Músicos e o pacto satânico:  para incentivar o repúdio à música popular, alguns palestrantes citam o suposto  pacto demoníaco feito pelo músico Robert Johnson (um dos pais do blues). Há quem  diga que essa história é uma criação de invejosos guitarristas da época e que se  originou em um contexto místico-religioso específico (hoje, se alguém é um  virtuose em seu instrumento ninguém dirá que o indivíduo fez um pacto com o  diabo; seria negar a dedicação, o estudo diligente, a criatividade desenvolvida  e a disposição motora natural).
Seja como for, o bluesman Johnson também  não negava a história. A contrapartida da música clássica é a história de que o  violinista Niccoló Paganini tinha pacto com o demônio (para incrementar o  folclore marqueteiro, ele também não ‘abjurava’ o tal pacto).
3) Diferença entre o público pop e o  público do período clássico-romântico: com o intuito respeitável de  advertir quanto a capacidade da música pop provocar instabilidade emocional, as  palestras tentam diferenciar a recepção do público histérico dos Beatles do  público tranquilo que aplaudia Beethoven. Mas esquecem/omitem/ignoram que,  também no século XIX, as divas da ópera eram ovacionadas com assobios e gritos,  que o pianista e compositor Franz Liszt recebia cartas e propostas amorosas e  lhe atiravam flores (y otras cositas más) em sua passagem, que Paganini  até alimentava essa histeria, e que os Beatles, não suportando o assédio  fanático do público e a gritaria dos shows, deixaram de fazer concertos públicos  a partir de 1965. Em O triunfo da música, o historiador Tim Blanning  lista uma série espantosa de atitudes fanáticas por parte do mulherio da high  society europeia em torno de Paganini e Liszt. 
4) Mensagens subliminares: há  palestrantes que se especializam em assombrar o público com mensagens demoníacas  escondidas na rotação reversa de um disco. A maioria dos exemplos de aúdio são  seguidos de malabarismos de interpretação (se alguém não disser de antemão o que  está sendo cantado não se adivinha uma palavra). Nem precisavam. A propaganda de  valores anti-cristãos sempre esteve bem explícita nas letras, na indumentária e  no comportamento de muito ídolos pop. Alguns palestrantes concordam que esse era  um recurso dos anos 70 para promover os álbuns, mas que também dizia muito sobre  a aproximação pessoal dos cantores com o misticismo. 
5) O poder da música sobre o  cérebro: há problemas quando se trata o ritmo como um elemento musical  de estimulação física, a harmonia como um componente de estímulo mental e a  melodia como um componente de estimulação espiritual (ou emocional). Essa  compartimentação dos elementos musicais esteve nas pesquisas de Helmholtz  (1821-1894), que dava muita ênfase ao fenômeno físico-sonoro na elaboração do  significado musical, resultando num obsoleto positivismo biológico.
Já  Hugo Riemann (1849-1919) afirmava que o sentido musical era dado por fatores  históricos e sociais do sujeito, que suas respostas obedeciam estímulos externos  de uma dada cultura, não reduzindo, assim, a relação homem-som a uma perspectiva  naturalista. Ou seja, o ser humano não seria um sujeito passivo que reage como  um autômato ao fenômeno sonoro. Atualmente, já é uma obviedade dizer que a  música, mais que um fenômeno acústico, é um fenômeno sociocultural e que nossa  reação a ela está ligada também ao nosso histórico musical e estado  emocional.
Por outro lado, não se pode negligenciar a  atuação do som musical sobre os sentidos e sobre o corpo, sendo esta uma  perspectiva pertinente e que merece ser mais bem explorada – um bom livro sobre  o assunto é Alucinações Musicais, do neurologista Oliver Sacks. Este  eminente estudioso da música e do cérebro diz que ainda não é possível  determinar até que ponto as reações de um indivíduo em relação à música dependem  mais da própria fisiologia ou mais da cultura.
Fonte:Nota na Pauta