O clipe começa numa estrada com os 12 discípulos em motocicletas e vestidos com jaquetas de couro onde se lê o nome de cada um deles: “Peter, Judas,...”. Na garupa, está Maria Madalena. É ela que saca um revólver de cujo cano sai um batom com o qual borra os lábios de Judas para que este dê seu beijo da traição em Jesus. Na cena seguinte, Jesus e Judas aparecem numa banheira onde Maria Madalena lhes lava os pés. Poderia ser uma dessas encenações gospel modernosas dos eventos da Páscoa, se Maria Madalena não fosse a atual senhora da transgressão pop, Lady Gaga.
Mas não é ela mesma que, nas entrevistas, diz crer no evangelho e amar e respeitar todas as crenças? O que aconteceu? De fato, a Lady é Gaga mas não rasga dinheiro. Ao contrário, ela tem controle sobre todo o modo de produção de seus vídeos e canções. É uma cantora em pleno domínio de sua loucura.
Lady Gaga é formada na Academia Madonna de Artes Musicais e Performáticas. Ela sabe que toda performance pop tem de ser planejada e calculada com a diligência e a precisão de um gerente de banco. O que está em jogo, no caso das estrelas pop, não é a conta bancária, mas o saldo da própria imagem midiática.
No modo de produção pop, a canção é um detalhe. Claro que a canção precisa ser pegajosa, ter um arranjo contagiante, mas isso nem sempre é suficiente. Até porque, nas rádios e TVs, a repetição não é vã, o que leva uma música de parcos recursos melódicos e poéticos a cair no gosto popular.
As condições mais favoráveis para a proliferação viral são o tema "escandaloso" da canção e o suporte "extravagante" do visual. E para ser novidade num mundo em que o novo já nasce antiquado, o sensacionalismo sexual misturado à transgressão religiosa resulta numa imagem de iconoclastia que encanta plateias globais. Muito artista pop adora passar por destruidor de símbolos religiosos. Mas a maioria deles, no fundo, é iconoclasta só da mídia pra fora. Em casa, eles são bem comportadinhos e mantêm os filhos longe da MTV.
Sobre a canção “Judas”, Lady Gaga disse: “Sinto honestamente que Deus me enviou aquela letra e aquela música”. Pronto. Como se não bastasse os artistas gospel dizerem que Deus lhes sopra a letra e a música de suas canções de sucesso, agora os astros pop também dizem ouvir o ditado divino com as partituras da lei. Da lei de Gaga, só se for, com o perdão do trocadilho fácil.
Curioso é que a letra de “Judas” faz citações bíblicas (“lavarei seus pés com meu cabelo”; “depois que ele me trair três vezes”) e parece falar da gangorra espiritual do coração humano que quer as virtudes de Cristo, mas cede a preferência às tentações de Judas: “Eu quero amá-lo, mas algo me afasta de você / Jesus é minha virtude / E Judas é o demônio a quem recorro”.
No entanto, a própria Lady Gaga se encarrega de desmontar a aparência de batalha espiritual, já que a música não fala de Bíblia, mas “de ex-namorados e traição”. Em sua opinião, “a única coisa controversa sobre este vídeo é que eu estou vestindo Christian Lacroix e Chanel no mesmo quadro".
Ela avisa que o clipe “é uma metáfora para o perdão e a traição e as trevas são um dos desafios da vida em vez de ser um erro”. Como se vê, Lady Gaga não é nenhuma tonta aprontando escândalos. Entretanto, os animados baladeiros de casas noturnas mundo afora vão se ligar nessa “metáfora da traição”? Ou o público preferencial nem vai notar a insalubre mistura de hedonismo e anarquia religiosa?
Há 20 anos, a professora Madonna lançou “Like a Prayer”, cujo videoclipe mostra cruzes em chamas e onde ela sonha que está fazendo amor com um santo. Gaga aprendeu bem as lições de transgressão pop e, além das distorções em “Judas”, ela aparece ainda como freira vestida num látex vermelho e simula um ato sexual ao lado de uma cruz no clipe de “Alejandro”.
A reiteração do recurso de deslocar dogmas cristãos para ilustrar seduções amorosas indica que a dinâmica da confusão e banalização do contexto espiritual bíblico continua na moda.
Entrevistas da cantora ao E!Online e à revista NME.
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